Texto: Xavier Bartaburu
Em 1915, quando Serrano do Maranhão ainda era parte de Cururupu, o povo lá do quilombo de Soledade decidiu criar uma festa de boi. Outros bois nasceram, antes e depois, ali nas reentrâncias do oeste maranhense, e criaram fama em todo o estado pelo jeito de tocar o pandeiro com o dorso da mão. Virou sotaque: costa-de-mão. Cururupu entrou para a história como o berço desse sotaque, e de fato os maiores bois desse tipo vêm de lá. Mas Serrano do Maranhão não é mais Cururupu. Emancipou-se faz duas décadas e aquele primeiro boi virou o único do município, dos mais antigos da região, por cem anos escondido – mas não esquecido – nas matas do litoral. Isso até 2016, quando o Bumba-meu-boi União da Sociedade fez sua estreia em São Luís.
– O meu sonho era levar esse boi pra cidade – revela Nelci de Almeida Pinto, atual presidente da Associação Cultural da Comunidade Quilombola de Soledade e Adjacências, devidamente registrada em ata de criação no ano de 2012.
E lá se foram os 45 integrantes do boi de Soledade brilhar na capital. As índias na frente e atrás o batalhão, e no meio deles Nelci, neto de um dos fundadores, brincante há mais de quarenta anos. Na voz, Denivaldo Piedade, puxador e compositor das mais lindas toadas. Depois voltaram no ano seguinte – e brilharam de novo. Mas eram ainda brilhos forasteiros, como sempre foram, bordados pelos artesãos de Cururupu.
Tudo leva a crer que 2018 será o ano em que Serrano do Maranhão vai declarar sua segunda emancipação de Cururupu, essa agora a dos bordados. Trinta mulheres da comunidade passaram o segundo semestre do ano anterior, todos os finais de semana, aprendendo a criar as vestimentas que fazem os bois cintilarem pelas ruas e praças do Maranhão. Foi um dos seis cursos que o Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (Iema) ofereceu aos moradores do município, cinco deles em comunidades quilombolas. Vale lembrar que Serrano do Maranhão é o município mais negro do estado: 40% da população se declarou de cor preta no último censo.
– Esse ano vamos fazer já com as vestimentas daqui – confia Nelci. – A gente tá pedindo a Deus que elas firmem esse potencial delas.
Nataniele Cordeiro, por exemplo, já está bem avançada na costa de camisa que começou a bordar durante o curso. E mostra, cheia de orgulho: um pano de veludo vermelho, para se destacar sobre o calção preto, decorado com um ramo enorme rodeado de figuras semelhantes a estrelas que aqui chamam de “salpico”. Detalhe: cada canutilho – são milhares – é costurado a mão. Nada de cola. Se tem uma coisa que não falta nas roupas do boi é enfeite – imagine o trabalho. E imagine o peso:
– Tem camisa que pesa mais de quatro quilos – informa Nelci.
– E é um forno! – emenda Nataniele.
Daí que, durante o curso, sob a orientação de Gregória e Nazaré – professoras da comunidade, mais experientes na arte do bordado –, Nataniele e suas colegas tiveram de exercitar o coletivo, repartindo entre si as partes de cada vestimenta: umas fizeram as costas da camisa, outras a frente, outras as mangas, outras cada perna da calça, e assim por diante. Já virou jeito de fazer a coisa funcionar:
– Estamos querendo trabalhar em equipe – anuncia a moça. – É uma experiência nova.
– E é bom porque é dinheiro, né? – acrescenta Nelci.
Pois é: além de aprender o novo ofício, elas ainda vão vender as peças para a própria comunidade. Já que roupa de boi é algo que precisa ser comprado todo ano, que seja pelo menos de gente daqui, não de Cururupu. E olha que um boi como o de Soledade não é barato: só a roupa das oito índias do grupo – entre elas Nataniele – custou 4.200 reais. A vestimenta de Denivaldo, o puxador, de longe a mais enfeitada, saiu por 1.500 reais. Tem gente na Soledade que investe pesado nas roupas: vende porco, farinha, carvão, até boi (o bicho) já venderam. Mas a festa mesmo é patrocinada pelos oito sócios da União da Sociedade, que fazem a vaquinha anual para garantir o brilho na capital.
– Pra mim é mais pesado porque eles acham que eu tenho mais dinheiro, por ser o presidente – diz Nelci, cuja renda vem toda da roça e da aposentadoria. – Se eu tivesse um salário bom, eu não ia medir distância!
O bom é que parte do investimento se paga com o cachê das apresentações em São Luís. Mas, de todo modo, há que se ter o dinheiro para comprar e bordar os brilhos todos.
– É um gasto, mas quando chega a festa é só alegria pra gente – diz Nelci, já emendando o convite para vir a Soledade no próximo São João ver o boi brilhar. – Vou te ligar, hein?
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Serrano do Maranhão
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IDHM: 0,519
Ano de fundação: 1997
População: 10.940 habitantes
População rural: 61,3% do total
Renda per capita: R$ 123,44
População abaixo da linha de pobreza: 72%
Taxa de analfabetismo (acima de 25 anos): 41,9%
Mortalidade infantil: 32,2 entre mil nascidos vivos